quinta-feira, 15 de setembro de 2011

A Hora E A Vez Do Gari

Hoje pela manhã eu já havia preparado metade de um texto para publicar aqui no blog. Pretendia terminá-lo à tarde depois que voltasse da aula, porém acabei me deparando com uma pessoa dentro do ônibus, um personagem digno de destaque para uma crônica. Considerei-o mais interessante do que o tema que norteava o texto que eu havia escrito pela metade, então resolvi adiá-lo para semana que vem, começando este texto do zero. Meu bom senso me disse que a hora e a vez pertenciam à outra pessoa. Sem mais delongas, vou me reter, desta vez, apenas a descrever a cena, mostrando a realidade como ela aconteceu, sem dissertações, comparações forçadas, conclusões ou falsos moralismos. Vamos aos fatos.
Manhã de quinta-feira. Dia nublado. Nem queria ir para a aula. Mesmo cedo, eu já me encontrava no meu estado habitual de marasmo. Entrei no ônibus, paguei a passagem e me sentei num banco que ficava no meio. Pouco depois de ter me sentado, começo a ouvir uma cantoria. Logo já fechei a cara e me virei pra janela. O homem sentado no fundão do ônibus cantava um samba, desconhecido para mim. Nada contra o samba: só não gosto de ser forçado a ouvir algo, o que quer que seja, quando me encontro preso dentro de um transporte coletivo, em que supostamente não posso sair. Preconceituoso, já pensei que se tratava de mais um baderneiro querendo chamar a atenção, perturbando a paz silenciosa dos outros. O ônibus foi seguindo seu caminho.
Ouvi o barulho da cigarra e logo depois disso o ônibus parou no ponto. Uma velha senhora que queria descer pediu pro motorista esperar um pouco. O homem, que cantava, parou de fazê-lo e perguntou a senhora se ela precisava de ajuda. Rispidamente ela recusou e desceu sozinha, do jeito que queria.
O homem que cantava, então começou a falar. Com quem, não consigo imaginar, porque em momento sequer desta história virei meu rosto, fixo na paisagem além da janela, para vê-lo. Sou um fofoqueiro discreto que costuma a atuar em certos casos só com os ouvidos. O homem comenta que as senhoras de idade são muito teimosas. Comparou a senhora que havia acabado de descer com a “velha” de sua casa, de 91 anos, que costuma recusar qualquer tipo de auxílio. Disse que sua intenção era só ajudá-la, porque senão depois ia acabar sobrando tudo pra ele. “É tudo culpa do gari”, ele disse. “A senhora tropeça, cai, se esborracha no chão e a culpa é do gari que estava perto e não a ajudou. É tudo culpa do gari. De quem é a culpa do terremoto no Japão? Do gari é claro!”


O cantor-gari sem dúvida alguma daria um excelente artista de stand-up comedy. Inteligência, personalidade e carisma o sujeito possuía. Empolgado com as risadas das pessoas, deixou de cantar e começou a falar, conversando com quem estava próximo. Disse que não existia samba feito para branca; só tinha samba para preta, por isso, resolveu fazer um samba para uma branca para deixá-la feliz, senão ela ia ficar com ciúmes da outra. Embora casado com uma preta do Jacaré ele tinha uma “outra”, a branca. Disse que as duas se davam bem e que ambas o aguardavam para sua festa de aniversário. O homem, que estava completando 45 anos, ia contando que alternava entre as duas: quando uma estava num dia ruim, visitava a outra e vice-versa.


Desse jeito, com sua simplicidade, alegria e irreverência, ia conquistando os passageiros que permaneciam sentados perto dele. Riam muito e batiam papo. Somente uma mulher se deu o trabalho de se levantar para sentar-se longe, coincidência ou não, exatamente na parte que ele falou que tinha duas mulheres. Foi uma morena alta, bonita, vistosa, vestida como executiva. Só para completar o perfil dela, devo dizer que ela usava salto alto e o seu nariz se encontrava perfeitamente em pé. Prefiro crer que ela tenha feito isso por julgá-lo machista do que por outro motivo. Ainda há gente que se acha melhor do que o povo só por causa do seu emprego e de uma porcaria de diferença salarial. Gente que não que se misturar com a "ralé".


Azar o dela. Com ele o silêncio não durava muito. Assunto não faltava. Falou sobre o trabalho (lixo de rico é igual lixo de pobre: tudo fedorento), sobre como conquistava as mulheres (era passista do Salgueiro e as mulheres adoram vê-lo dançar) e do futebol do dia anterior (jogador de futebol bom se distingue pelo nome que deve ter só quatro letras como Pelé, Zico e Romário... O Roma!). Da janela saudava os colegas de profissão, conforme o ônibus ia passando, e eles o respondiam de forma entusiasmada. Se o conheciam ou não eu não sei. O certo é que o homem estava feliz. Dizia-se feliz.


Próximo ao Obelisco da Avenida Rio Branco, o gari puxou a cigarra para descer no próximo ponto. Despediu-se e disse que ia logo para sua festa de aniversário, porque as mulheres à aquela altura do campeonato, já deveriam estar na portaria do prédio esperando-o, aloprando o porteiro. Enfim ele saiu do ônibus deixando um vazio perceptível. O ônibus retornara à aquele estado silencioso de sempre, em que todos, estranhos para todos, não se falam e nem se importam com o bando de desconhecidos que o cercam. 

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