segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Destrinchando Medicina

Para quem não sabe adoro cultura japonesa e sou viciado em mangás há anos, os quais hoje em dia, por economia, leio on-line. Até assistiria animes na web (o que certamente me pouparia bastante tempo), mas como minha internet é discada seria uma missão bem difícil. Nesses dias eu estava procurando algum mangá diferente dos que leio atualmente (One Piece, Gintama, Bakuman, etc) para variar um pouco. Tive a sorte de encontrar Black Jack, mais longo e pessoal trabalho do lendário mangaka Osamu Tezuka, The God Of Manga, figura que popularizou os mangás, criando obras famosas como Astro Boy, Kimba o Leão Branco, A Princesa e o Cavaleiro, dentre outras. Há tempos estava procurando algum mangá do Tezuka para ler, mas por alguma razão provavelmente relacionada a direitos de propriedade intelectual, encontrá-los gratuitamente na internet e em algum dos dois idiomas que sei ler, sempre foi uma missão bastante complicada.
Enfim, tive esse oportunidade e não deixei ela escapar, já lendo o primeiro volume de mais de 200 páginas no mesmo dia em que o encontrei. Como eu disse no parágrafo abre-alas, esse é um trabalho bastante pessoal de Tezuka. Isso porque ele utilizou parte de sua experiência acadêmica (ele era formado em Medicina) para dar mais detalhes a história. Ótimo momento para falar sobre ela. Black Jack é um médico-cirurgião, considerado o melhor do mundo, que opera sem licença, cobrando preços exorbitantes pelos seus serviços. É um homem solitário marcado por inúmeras cicatrizes no corpo causadas por um acidente na infância, na qual a que mais se destaca é a cicatriz do seu rosto, que o divide, unindo sua pele natural a uma outra, de tonalidade diferente, tornando uma figura sinistra diante de desconhecidos que não sabem que na verdade ele é uma boa pessoa.


Os capítulos são muito independentes, não havendo muita ligação entre si. Como é um mangá médico, a cada historia apresentada ele trata de um  paciente com um diagnóstico diferente. Na verdade, pelo que li, todo dia acontece uma desgraça. Tezuka não poupa ninguém, acidentando crianças mulheres e idosos para colocá-los depois em uma mesa de operações. Black Jack até me fez lembrar dessa enxurrada de séries médicas da TV à cabo que temos hoje em dia, como a do doutor House, por exemplo. Será que os ocidentais plagiaram o grande mestre Osamu Tezuka? Só sei que Black Jack é bem mais antigo do que House.


Lógico que o mangá é bem mais fantasioso, como não poderia deixar de ser, mostrando o sucesso de cirurgias irrealizáveis na vida real. O que quero destacar na verdade é o ponto que esse tipo de narrativa é capaz de apresentar que é a experiência cotidiana de uma profissão bem delicada.
Meu ponto de vista sobre os médicos sempre foi bem definido: sempre os considerei como loucos. Loucos por lidar com uma profissão que brinca com a vida e quererem todo dia ir trabalhar onde a única certeza que você tem é que verá gente doente. Não é um jogo de azar; se lida com a morte de uma maneira que qualquer erro pode ser fatal. Trapalhão do jeito que sou nunca poderia seguir uma carreira dessas. Até por isso, antes mesmo de decidir de forma definitiva qual seria minha carreira profissional, prometi a mim mesmo que não escolheria nada que afetasse diretamente a vida das pessoas. Meus erros são muitos e eu não suportaria ter que lidar com a morte de terceiros por conta disso. Se fosse médico, na primeira perda humana que eu tivesse sobre minha responsabilidade, entraria em uma profunda depressão, mesmo sabendo que tivesse feito tudo de forma correta, tudo o que eu poderia fazer. Sou o tipo de gente que fica mais triste quando prejudica os outros do que quando prejudica a si mesmo. De certo modo fui altruísta, prevendo-me antecipadamente de realizar futuras cagadas. Renunciei a Medicina, preventivamente por covardia: nem quis tentar. Mas sei que é necessário que alguém exerça essa profissão.
Particularmente falando nunca fui um grande fã desse tipo de série médica, assim como as séries policiais. Isso porque elas sempre ficam mostrando o lado cru da vida; você sabe, antes mesmo de ver, que não irá assistir nada agradável visualmente. Aquele monte de gente fria e insensibilizada, cutucando e revirando defuntos, doentes e moribundos como se fosse a coisa mais normal do mundo. Em Black Jack, freqüentemente o protagonista pega o seu bisturi e corta os pacientes na sala operação como se estivesse destrinchando um peru de natal com uma faca de cozinha.


Só que a ficção ilustrando o cotidiano da vida de um médico acaba nos deixando com o tempo, mais acostumados com esse tipo de situação. Pessoas sadias feito eu, que raramente ficam doentes e justamente por isso, não freqüentam regularmente os hospitais, ficam um tanto chocadas por verem sangue, tripas e viscosidades. Para nós é um espetáculo grotesco do qual queremos distância. Mas para o pessoal que trabalha com isso tudo é perfeitamente normal, fruto do seu cotidiano característico de ambiente de trabalho. Com a ficção, o choque inicial de certa forma vai-se diluindo com o tempo. Vamos nos adaptando à aquela realidade. Acredito que na vida real também seja assim; os médicos novatos devem tomar um susto inicialmente, mas com o tempo se acostumam. Aí começa a perda de sensibilidade.
Lendo percebi o quanto nós seres humanos somos frágeis. Não quero deixar ninguém com paranóia, mas os tipos de situações de vida ou morte causadas por enfermidades ou acidentes podem ocorrer a qualquer momento com qualquer um de nós. Deveríamos, desde já nos acostumar com elas.  Afinal de contas, de outra forma não morreríamos.
Aí entra o prestígio do médico. Diferente de nós eles não tem escolha. Tem que lidar com a vida e a morte e interferir, de preferência a favor da vida. Não podem se recusar e nem ter “nojinho” de qualquer besteira que possa surgir durante o procedimento. Não sou ingênuo. Sei que nessa profissão não existe só o heroísmo; tem quem a escolha por causa do dinheiro e do prestígio social que ela oferece, assim como na advocacia. Mas há quem escolha ser médico porque sabe que o que faz é algo importante, uma profissão bonita que exige muito amor para realizá-la. É uma profissão que se diferencia das demais porque permite que pequenos e grandes milagres aconteçam. Algumas doenças até se curam sozinhas pelo nosso organismo, mas outras exigem intervenção médica, caso contrário a sentença de morte é certa. Consigo imaginar a humanidade sem inúmeras profissões, inclusive algumas acadêmicas, mas jamais incluiria nessa lista a medicina. Não é fácil se tornar médico e aos olhos de meros mortais que não agüentam ver gente doente como eu, seria uma profissão bastante incômoda que afetaria o bem estar psicológico de nossas vidas pessoais, mas enfim: cada um sabe bem o que faz e felicito as pessoas que escolheram a medicina pelos motivos certos. Obrigado doutor Osamu Tezuka por me mostrar tudo isso através de suas histórias de desenhos simples e narrativas dotadas de grande sensibilidade e humanidade. Mesmo após mais de 20 anos de sua morte o grande mestre ainda tem lições para nos ensinar e de certo modo me curou, fazendo-me refletir sobre certas coisas. Descanse em paz, onde quer que você esteja.


PS: Leia o mangá Black Jack on-line (em inglês) aqui:
Até compraria mas não lançaram aqui no Brasil...

4 comentários:

  1. leonildo31/12/10

    GOSTO MUITO DO BLOG,CHEGUEI NELE ATRAVÉS DA DESCICLOPÉDIA A UNS DOIS MESES E ACHEI MUITO ENGRAÇADO E INTELIGENTE.DETALHE TAMBÉM SOU MISANTROPO E MEIO ESQUISITÃO.

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  2. Vc mencionou a desciclopédia... Hahahahah acredita que fui eu que escrevi o que tá lá? De qualquer modo agradeço o interesse no meu modesto blog. Vlw

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  3. leonildo1/1/11

    GOSTARIA QUE VOCÊ CITASSE ALGUNS ARTIGOS SEUS NA DESCICLOPÉDIA

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  4. Não escrevi nenhum artigo completo para a desciclopédia :/

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