sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Um Mensageiro Do Céu

Apesar do meu nome um tanto quanto religioso, eu não o sou. Até já fui, entretanto não sou mais. Da infância até meados da adolescência eu ia para igreja católica todos os domingos por insistência dos meus pais. Agora que sou adulto não frequento mais. As razões para essa mudança? Creio que o estudo da história e a cultura pop subverteram a minha cabecinha católica. Indo às missas, eu me sentia que nem a personagem da Linda Fiorentino no filme Dogma. Não é a toa que esse filme do Kevin Smith foi tão criticado pelos setores religiosos na sua época de lançamento. Ele permite alguns questionamentos. Assistindo-o pude perceber que tal qual a personagem eu ia para igreja mais pelo hábito do que por qualquer coisa. Os sermões entravam no meu ouvido e saiam pelo outro, não dava mais para viver me enganando. Agora eu apenas acredito em uma força maior. Certeza absoluta eu não tenho. Apenas acredito, apesar de não ir mais à igreja.


Para preencher essa lacuna vazia do meu horário nas minhas manhãs dominicais, criei o hábito de caminhar. A verdade é que este pássaro que vos fala adora fugir da gaiola em que vive. Se tivesse a oportunidade o faria mais vezes. Não me falta vontade de abrir minhas asas e voar até lugares mais distantes. Porém faltam condições para isso e principalmente companhias dispostas a andar com este silencioso cigano das cidades.
Só me resta andar pelos costumeiros lugares comuns de sempre. Os cenários se repetem e nunca vejo nada de novo, mas sempre retorno a eles. O legal é que presencio situações que me servem de inspiração para contar histórias. Confesso que me sinto como o Forrest Gump às vezes. A diferença é que em vez de correr rapidamente como ele, eu caminho vagarosamente. Também há o fato de que correndo, o Forrest chegava a vários lugares e eu caminhando nunca chego à lugar algum. Continuo a andar em círculos, não só nas caminhadas, como na vida.


No último domingo não foi diferente. Cenário: Quinta da Boa Vista. Dei apenas uma volta na área e resolvi me sentar num dos bancos verdes que tem por lá. Do nada resolvi reatar um velho hábito meu da adolescência. Eu costumava me sentar lá nos domingos e ficar refletindo sobre a minha vida, os acontecimentos da semana, os aborrecimentos, as alegrias etc. Fazia isso em voz alta. Parece estranho, mas é uma atividade libertadora. Eu diria até que terapêutica. Sempre me sentia renovado depois de fazer isso. Logo, decidi sentar-me num ponto estratégico de pouca circulação para evitar olhares curiosos e acusadores. Acredite, já tive experiências semelhantes a essa antes. Por isso aí vai um conselho: caso queira falar sozinho, certifique-se antes que você está realmente sozinho. Caso contrário irão te julgar como louco.
Infelizmente fiquei mais uma vez sem a minha reflexão semanal. Poucos minutos após eu ter me sentado pude avistar de longe um sujeito caminhando em minha direção. Antes mesmo de falar com ele, pude perceber que ele era membro de alguma igreja: o homem era negro, aparentava ter entre 50 e 60 anos, trajava camisa social por dentro da calça comprida, usava sapatos pretos e carregava uma pequena maleta. Perdoe-me pela minha grosseira sinceridade, mas parecia que ele tinha os dizeres “testemunha de Jeová” estampado na testa. Não deu outra. No primeiro momento meu instinto era fugir dali, contudo resolvi ficar para ver no que ia dar. Afinal, não devo nada a ninguém. E não havia certeza de que ele ia falar comigo.
Acho melhor eu justificar a minha implicância. Não sou intolerante quanto a credo ou religião alguma. Aceito bem as diferenças. De verdade. O problema é que por anos fui atormentado pelas testemunhas de Jeová batendo no portão da minha casa. Achava isso irritante e desnecessário: posso até estar falando besteira, mas imagino que até mesmo os ateus sabem da existência de Deus. Não é necessário ficar divulgando-o de porta em porta. Sempre tive vontade de dar o troco, seguindo-os até as suas casas para bater nas suas portas em horários inconvenientes do mesmo jeito que faziam na minha. Apesar disso, nunca os tratei com hostilidade. Por vezes quando eu não os ignorava fingindo estar dormindo, eu os atendia. Só que eu me dizia ocupado para escutá-los, mesmo não tendo ocupação alguma no momento. Não me julgue mal. Sei que isso não justifica, mas sei que tem gente que faz coisa pior.


Entretanto tudo isso é passado. Traquinagens de moleque. Não posso negar a minha realidade atual: bem ou mal sou um estudante de jornalismo. Parto do pressuposto de que um dia serei jornalista. Por todas essas longas estradas nas quais adquiri conhecimento que percorri, sempre questionei a utilidade prática de certas coisas que aprendia. Sejamos honestos: existem coisas que estudamos somente para fazer prova e tirar boa nota. No mundo real não possuem valia. Não é o caso do diálogo. Embora eu não tenha a aula ”diálogo” sei que tê-lo constantemente com as pessoas é importante não só para profissão como para vida. Como jornalista devo saber escutar as pessoas mesmo discordando inteiramente das ideias delas. Não custa nada ouvir o outro lado. Estando livre, porque não estabelecer um diálogo com um desconhecido?
Sempre fui bom ouvinte apesar de não falar muito durante as conversas. Por razões desconhecidas as pessoas sentem-se à vontade conversando comigo. Eu devia ser psicólogo. Só não me peçam para guiar os rumos de uma conversa. Se depender só de mim, um bate-papo eventual e não programado se encerra em menos de um minuto. Digamos que eu tenho mais perfil de comentarista do que de apresentador.


Voltando a história, não cedi ao impulso de fugir. O homem aproximou-se, sentou-se do meu lado e começou a conversar comigo. Não demorou muito para ele tirar a Bíblia da sua maleta. Tenho que compartilhar a sensação que tive: acho que o cara resolveu conversar comigo porque pensou que eu era um delinquente que estava ali com a intenção de assaltar alguém. Eu estava de boné, camiseta e bermuda. Mesmo sem essas roupas eu tenho cara de marginal. Ele deve ter pensado que valia a pena tentar me salvar. Ou melhor: salvar outras pessoas de algum mal que eu pudesse cometer a elas. Devo relembrar que estou apenas especulando. Um velho hábito de um misantropo que não confia em ninguém.
Eu lhe ouvi atenciosamente. Para minha enorme surpresa eu lhe escutei sem fazer as minhas caretas de deboche costumeiras. Realmente ele me deu coisas a pensar como a ganância do homem e o individualismo existente na nossa sociedade. Enquanto conversava com ele pude perceber que os seus olhos eram amarelados, já desgastados pelo tempo. Certamente eles viram mais coisas do que os meus. Até por isso eu respeitei o que ele me dizia. Seus olhos me transmitiam maturidade e experiência, coisas que eu, um jovem mancebo, ainda pouco possuo.
Contudo o que mais me impressionou nele foi sua fé. Um homem velho com tanta fé e eu novo sem nenhuma. Ele realmente acredita que um dia teremos o paraíso na terra. O homem me contou a sua história de vida: após anos de serviço e lealdade trabalhando como um bom funcionário, seus antigos patrões lhe demitiram e ele agora luta na justiça pelos benefícios a que tem direito. Em seguida ele me mostrou uma passagem na Bíblia que dizia que um dia a terra seria dominada pelos mansos. Ele acreditava nisso de verdade. Guardei para mim o pensamento de que duvidava que isso fosse se concretizar. Já fui tantas vezes o pacato cara legal que perdeu para gente chamativa, gananciosa e com "sangue nos olhos", que duvido que essa reversão de domínios se realize. Embora eu tenha menos tempo de vida do que aquele homem as minhas experiências me tornaram mais cético do que ele. E pelo visto ele já sofreu mais do que eu por conta de sua serenidade. Por isso sua fé me impressionou bastante.
Outro assunto que chamou a minha atenção na conversa com o homem foi o que ele me disse sobre o diabo. Segundo ele, o tinhoso não aparece para nós na forma vermelha e caricata construída pelo imaginário popular. Ele usa diversos disfarces para nos iludir e seduzir. No momento eu achei aquilo cômico e segurei o meu riso. No dia seguinte, olhando o álbum de fotos de uma bela garota que acabei de conhecer, pude vê-la posando bem sexy numa foto, fantasiada de diabinha. Assustei-me com aquilo. Espero ser apenas coincidência e não um aviso...


Por fim ele me convidou para ir visitar sua igreja. Falei que não estava interessado e ele não insistiu no assunto. Recomendou-me algumas coisas para eu pesquisar na Bíblia por conta própria. Não sei se eu vou fazê-lo algum dia. Só sei que não o fiz nessa semana como disse a ele que faria. O homem se despediu e para meu espanto, foi embora andando lentamente pelo mesmo caminho pelo qual veio. Esperava que ele continuasse em frente para falar com outras pessoas, mas isso não aconteceu. Tive a estranha sensação de que ele havia surgido para falar especificamente comigo.
Devo ter blasfemado em alguns momentos dessa história. Se estivéssemos na Idade Média eu provavelmente estaria queimando em uma fogueira neste momento. Desculpa aí se ofendi a religião de alguém gente. Para não falar mais bobagens foi concluir o texto de uma vez. A verdade é que acredito que algo acontece a nós após a morte. Algo como a incineração ou a reciclagem de nossas almas, reaproveitadas em corpos novos. Talvez até mesmo possamos adquirir a vida eterna no paraíso. No purgatório saberemos a resposta. Tenho a ligeira impressão de que caso eu esteja errado em relação ao meu ceticismo, lá irão me mostrar uma gravação dessa longa conversa que tive com o homem dos olhos amarelados. E para completar um anjo irá me dizer “Você foi avisado, lhe mandamos um mensageiro”.

PS: Perdão por esse hiato inesperado no fim do ano. Andei um pouco ocupado cumprindo as responsabilidades que a vida adulta exigem de mim. Além disso, andei ocupado vivendo. Não posso me esquecer de fazer isso de vez em quando.

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